Heróis da resistência: portadores de HIV que
sobrevivem por anos
Os cientistas estão
querendo saber por que muitas pessoas infectadas pelo vírus HIV conseguem viver
anos sem a doença se manifestar.
Os cientistas
querem saber o que essa gente tem de tão especial para deixar o vírus acuado
por um tempo muito maior do que o de costume. Por enquanto, há poucas pistas.
Mas as pesquisas poderão revelar um contragolpe fatal do organismo para
derrotar a mais terrível doença do
mundo atual.
Por Lúcia Helena de Oliveira, com a colaboração de Patrícia
Logulo, Chris Delboni, Mariela de Castro Santos, Luiz Americano e Rossana
Laurell.
Em novembro de 1986, o universo do assistente social Gerson Winkler foi
arrasado pelo vírus da
Aids. O papel com o timbre de um renomado laboratório acusava que o HIV causador da doença estava
escondido no sangue desse gaúcho de, então, 27 anos. Logo veio uma
aposentadoria por invalidez, mandando para o espaço um ótimo emprego numa
empresa de informática. Os médicos, por sua vez, eram categóricos: para eles, o
paciente só sobreviveria uns seis meses. Sem perspectivas, Winklervendeu tudo o que tinha, do carro ao
apartamento. Divorciado, disse adeus às filhas pequenas e partiu para o sonho
de uma volta ao mundo. Só que a viagem acabou, o dinheiro acabou e Winkler voltou
com saúde de ferro para o Rio Grande do Sul. Ainda assim, ficou esperando a
morte, que talvez estivesse atrasada. Passado um ano inteiro, nada. “Tive, aí,
uma certeza: iria morrer sim, mas de fome, se continuasse parado, sem emprego”,
diz ele, já com nove anos de resistência contra o HIV.
Como 5% dos contaminados pelo temível vírus da
Aids, Winkler é
considerado um long-term non-progressor (LTNP), definição inglesa para os indivíduos
soropositivos em que a doença não
progride mesmo após um longo período de infecção pelo HIV. “São organismos absolutamente saudáveis, em que nem sequer as
células defensoras do sistema imunológico apresentam qualquer alteração”,
explica Anthony Fauci, do Instituto Nacional de Saúde, nos Estados Unidos. “E,
no entanto, o vírus está
lá, dentro deles”, inquieta-se o especialista, quase impaciente com a charada.
Hoje, os casos não-progressivos são, de fato, a peça mais intrigante no
quebra-cabeças da Aids.
No início dos anos 90, cientistas ingleses descobriram africanos
com mais de dez anos de contaminação pelo HIV sem qualquer
sintoma de falência imunológica. Na época, cogitou-se que algo — um componente
genético — beneficiaria os soropositivos negros da África. Mas o tempo mostrou
que a resistência à Aids não é privilégio de uma raça. Alguns dos recordistas
mundiais na luta contra o HIVforam encontrados na Califórnia, Estados Unidos, graças a um
estudo anterior sobre a hepatite B,doença do
fígado que é sexualmente transmissível.
Ainda na década de setenta, a médica americana Susan Buchbinder,
do Departamento de Saúde Pública de São Francisco, passou a coletar o sangue de
mais de 6 700 homossexuais para investigar a incidência de hepatite nessa
população. Por sorte, as amostras foram congeladas e quando a Aids explodiu,
quase dez anos depois, a especialista resolveu dar uma nova examinada no
material que estava armazenado. Assim, ela provou que muitos de seus antigos
voluntários já tinham o HIV antes de 1980,
quando a Aids nasceu oficialmente. “E parte deles continua passando bem”,
garante a médica. “Conheço gente saudável que é portadora há dezoito anos.”
No começo, os cientistas rotularam esses indivíduos de
“sobreviventes” da Aids. Só recentemente surgiu a definição de paciente
não-progressivo, que é muito mais exata: “Sobrevivente pode ser quem vive
muitos anos, apesar de doente”, justifica o pesquisador americano Anthony
Fauci. “E, no caso, estamos falando de pessoas nas quais os males relacionados
à Aids nem sequer aparecem durante um longo período.”
A existência de organismos capazes de combater o HIV por muito tempo
é mais do que mera curiosidade científica. “Se desvendarmos seus truques,
poderemos reproduzir essas estratégias no corpo de quem tende a morrer depressa
por causa da doença”, diz Peter Hawley, diretor da
Whitman-Walker, a maior clínica para tratamento da Aids em Washington, capital
dos Estados Unidos.
Os cientistas partem de duas teorias para explicar o fenomenal
talento para briga de alguns infectados. “Neles, na maioria das vezes, as
células de defesa são mais ativas”, observa Mark Fineberg, outro pesquisador do
Instituto Nacional de Saúde, nos Estados Unidos. Ou seja, o sistema imunológico é capaz de golpear com maior rapidez e
eficiência tanto o próprio HIV quanto os
agentes de outras infecções.
A segunda teoria é a de que certos subtipos do HIV são adversários
fracos — vagarosos no ataque e facilmente intimidados por células de defesa
competentes. A fragilidade do inimigo deve ser provocada por defeitos
genéticos. “É provável que o segredo seja a combinação dos dois fatores — um sistema imunológico bem dotado e um vírus menos
perigoso”, pensa Fineberg.
A princípio, qualquer soropositivo é saudável e capaz de reagir a
gripes, resfriados, estresse e outros problemas do dia-a-dia como quem não tem
o vírus. O que difere os não-progressivos de
outros infectados é que eles conseguem manter a saúde por muito mais tempo. Seu
prazo limite, porém, a ciência ainda desconhece. Por enquanto, os pesquisadores
procuram peculiaridades no organismodessa gente.
Exames revelam que, no corpo dos soropositivos resistentes, a
quantidade de HIV é bem menor —
menos de metade do que se encontra na maioria dos portadores.
“Conseqüentemente, a atuação deles também deve ser branda”, raciocina a
infectologista carioca Cyntia Alves Pereira de Souza.
Além disso, nos nódulos linfáticos dos soropositivos que
desenvolvem a Aids relativamente depressa, osvírus praticam
atos de vandalismo. Os estragos são notados por meio de microscópio antes dos
primeiros sintomas maléficos. “Nos pacientes não-progressivos é diferente”,
garante o americano Anthony Fauci. “Essas estruturas, onde os vírus se
instalam, ficam quase preservadas.”
Até agora, a melhor descoberta é que nesses indivíduos uma outra
célula defensora, conhecida por CD-8, pode frear o avanço do vírus, liberando um grande número de
moléculas inibidoras. Cerca de 160 pesquisadores do mundo inteiro procuram a
chave química capaz de acionar essas células. Quando ela for encontrada, poderá
ser criada uma vacina terapêutica — incapaz de prevenir a contaminação peloHIV, mas com o poder de imunizar quem já estiver infectado. Então,
todos os soropositivos do mundo ( só no Brasil, eles são 500 000), ganhariam a
resistência da batalhadora minoria não-progressiva.
Dois fatores prejudicam a investigação dos organismos lutadores.
Um deles é que nem sempre os soropositivos sabem quando se infectaram,
dificultando a garimpagem de casos não-progressivos. O outro fator é a falta de
similaridades entre esses casos. No início, desconfiou-se que a inibição do HIVera privilégio de pacientes jovens — mas existem soropositivos
resistentes de todas as idades. Os pesquisadores arriscaram, então, analisar a
forma de contágio que, no entanto, também não parece ser importante.
Segundo dados do Instituto Nacional de Saúde, nos Estados Unidos,
os não-progressivos típicos são o retrato de um bom moço da geração saúde.
Cerca de 90% deles praticam exercícios três vezes por semana, quase não bebem
álcool e mantêm uma dieta equilibrada. Metade evita tomar remédio por qualquer
bobagem. E 80% jamais tragaram um cigarro. Outros estudos apontam que são
pacientes menos ansiosos e mais otimistas.
“É complicado apontar a influência das emoções”, diz a
infectologista Walkyria Pereira Pinto, professora da Universidade de São Paulo.
“É provável que uma boa qualidade de vida até contribua, mas não é determinante
da sobrevivência.” Na opinião da médica, só a boa alimentação faz sentido: “Umorganismo subnutrido
reage mal a qualquer infecção.”
Na realidade, convive-se melhor com o HIV hoje do que no
início da epidemia. As primeiras vítimas dadoença sobreviviam
apenas dois ou três anos após a contaminação. Atualmente, nos países avançados,
a média de sobrevivência é oito anos, sendo que ela tende a aumentar com novos
arsenais terapêuticos. “Temos mais informações sobre o comportamento do vírus”, afirma o médico paulista Dráuzio
Varella. Ele não tem dúvida de que é preciso evitar a reinfecção, o que é um
conceito novo. “Mesmo casais em que ambos são soropositivos não podem abandonar
o uso de preservativos nas relações sexuais”, alerta. “Às vezes, um descuido
fornece a dose extra de HIV que faltava para
se manifestar a doença. Ou, então, o portador adquire uma
forma do vírus mais
violenta.”
É bom que se comemore a vida cada vez mais longa dos
soropositivos. Mas, na mesma proporção em que a sobrevivência deles aumenta,
crescem os riscos de transmissão. No mundo inteiro já foram registrados mais de
986 000 episódios de Aids. Desses, 71 110 ocorreram no Brasil. “Cerca de quatro
mil pacientes são jovens entre quinze e dezoito anos de idade”, conta a médica
Lair Guerra de Macedo, que dirige o Programa Nacional de Combate à Aids. Metade
das vítimas brasileiras contraiu a doença em
relações sexuais. A contaminação pelo sangue representa 34,7% da incidência,
enquanto 2,6% dos contágios são de mãe para filho.
No entanto, as campanhas preventivas continuam raras e de gosto
duvidoso. E, uma vez consciente da importância do uso de preservativos, o
brasileiro paga caro: a camisinha nacional custa quase um dólar, enquanto o
preço nos países avançados é a metade disso. No Japão, onde cada cidadão ganha
em média dez vezes mais do que o brasileiro, a camisinha custa dez vezes menos.
“Desse jeito, fazer prevenção é como anunciar carro importado para miserável”,
critica Dráuzio Varela. “A epidemia continua descontrolada.” E, se o descoberta
de portadores não-progressivos é um alento, a realidade da Aids ainda é
terrível para a maioria dos infectados.
Para saber mais:
Aids hoje
(SUPER número 7, ano 6)
Aids a 1% da cura
(SUPER número 10, ano 10)
Há muito tempo, eles carregam o HIV. E passam bem
Força no trabalho
Trabalhar é a válvula de escape do gerente de treinamento João
Cristino da Silva, 35 anos, dez deles carregando o HIV. Raramente ele é encontrado em São Paulo, porque orienta o
atendimento numa rede de lojas de conveniência espalhadas pelo país. Jamais
comunicou à empresa que é portador. “Mas todos devem saber, porque já dei
entrevistas e participei de campanhas de prevenção na TV”, desconfia.
“Não faz diferença, pois minha postura impõe respeito em qualquer
lugar.” O alto-astral, ele acha, também conta: “Só fico triste quando falta
dinheiro”.
Exemplo de felicidade
Fanático pelo Grêmio, o assistente social Gerson Winkler, 36 anos, sempre vai ao estádio
torcer pelo tricolor gaúcho. Também não perde um Carnaval — “de preferência no
Nordeste”. Adora andar de bicicleta nos parques de Porto Alegre, quando não
está trabalhando na Secretária Municipal de Saúde. Há dois meses, ele e seus
colegas invadiram os motéis da cidade distribuindo camisinhas. Contaminado pelo HIV há nove anos, Gerson quer
servir de exemplo também para outros soropositivos: “Podemos levar uma vida
normal e cheia de alegria”, ensina.
Contra a expectativa
“Peguei o HIV aos vinte anos,
vivendo um grande amor”, conta o jornalista carioca Pedro Paulo Santana. Isso
foi há doze anos. Santana entrou em depressão — “mais pela morte do parceiro do
que pelo fato de também estar com o HIV”. Para piorar, sua médica na época admitiu que não sabia como
tratar a doença. E a avó lhe deu um terno, para
vestir um morto distinto. “Já usei a roupa em vários enterros de pessoas que
estavam saudáveis quando todos achavam que eu iria morrer”, diz. “Sou a prova
de que, em matéria de Aids, tudo é uma grande dúvida.”
Enquanto o bicho dorme
Ela é fotógrafa, tem 36 anos, já passou por três casamentos e há
sete meses descobriu-se soropositiva. A curitibana Fernanda Carvalho de Aquino
havia resolvido fazer o teste de Aids com o namorado, antes de abolirem o
preservativo. O resultado dela deu positivo. O namoro acabou. Mãe de três
adolescentes, ela deve ter o vírus há
cinco ou sete anos, período em que chegou a engordar. “Tem um bichinho que está
dormindo na minha mãe”, explica Lamec, de 11 anos. Enquanto o HIV não desperta,
Fernanda trabalha, faz ioga e malha duas horas por dia numa academia.
Convivência com o vírus
Em 1987, o paulistano José Araújo Lima recebeu o resultado
positivo de teste de Aids e entrou em pânico: “Viajei para o Japão e para
China, onde fiquei quatro anos, fazendo faxina e sendo ajudante de cozinha.” Lá
fora, não contou para ninguém que tinha o vírus. Mas tanto segredo era sufocante e
ele voltou para o Brasil. Hoje preside o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), que
apóia aidéticos e soropositivos. “Não estou ansioso pela descoberta da cura. Minha preocupação é viver bem com oHIV”, diz Araújo, com ar tranqüilo.
Entre os recordistas
O artista plástico americano Robert Anderson, 42 anos, já está
acostumado a doar sangue para ser estudado em vários centros de pesquisas do
mundo. Há dez anos, esse californiano de São Francisco descobriu que era
portador do HIV. Mais tarde, reexaminando amostras sangüíneas coletadas em
1979, os médicos confirmaram que Rob está infectado desde aquela época, pelo
menos.
Nesses dezesseis anos, porém, nunca teve sequer um resfriado
forte. “Antes mesmo de saber que era portador, aprendi a meditar”, diz ele.
“Por isso, adoto atitudes positivas.”
As várias faces do mal
Quando altera-se a ordem dos genes do HIV, surge um tipo diferente, com táticas próprias para agredir o
corpo humano.
Existem dois subtipos de vírus da
Aids, chamados B e C. Durante muito tempo, tentou se descobrir qual deles era
mais devastador. Hoje se sabe que tanto um quanto outro podem ter variações
tremendamente agressivas. A descoberta mais recente foi realizada por
cientistas da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Eles notaram que o
subtipo C tem facilidade para invadir macrófagos, células de defesa presentes
no pênis e na vagina — por isso esse vírus seria
mais freqüente em quem se contaminou em relações heterossexuais. Já a maioria
dos soropositivos homossexuais masculinos costuma ter o subtipo B, que prefere
infectar células chamadas monócitos, presentes na mucosa anal.
FONTE: http://super.abril.com.br/saude/herois-resistencia-portadores-hiv-sobrevivem-anos-459638.shtml
CÍCERA MARIA
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