Apoenan Rodrigues
Conta uma lenda medieval, que, num país com o divertido nome de Cocanha, a felicidade plena poderia ser alcançada com as mãos. Vinho jorrava em fontes, guloseimas de variados tipos pendiam das árvores, aves assadas voavam baixo à espera de serem devoradas e deliciosos bolinhos caíam lentamente do céu. Como se não bastassem, iguarias eram distribuídas gratuitamente nas lojas e, sonho dos sonhos, a velhice não era um fantasma assustador. Afinal, todo mundo que se tornasse cinqüentão instantaneamente voltava a ter dez anos de idade. Para o povo, esta era a imagem carnavalesca da alegria, da fartura, do prazer sem limites como forma de compensar os 40 dias de rígida restrição culinária, abstinência sexual e autopunição, que se seguiriam durante o período que a Igreja convencionou chamar de quaresma, a partir do século 11.
Na verdade, para compreender melhor a origem do costume devemos apertar a tecla backward da História. Em 604, o papa Gregório I instituiu que todos os seguidores do cristianismo deveriam reservar cerca de 40 dias por ano para se dedicar somente às questões religiosas, deixando de lado os abusos mundanos. Com o tempo, o hábito foi se arraigando até que, em 1.091, representantes do alto clero acharam por bem fixar uma data oficial para o começo da quaresma. O período teria início no dia que passou a ser chamado de quarta-feira de cinzas – quando os fiéis tinham sua testa marcada por uma cruz feita com cinzas de uma fogueira – e terminaria no domingo de Páscoa.
É evidente que a esperteza popular logo sacou que, para enfrentar e contrabalançar as agruras da abstinência, nada melhor do que dedicar, com igual fervor, certo número de dias a toda forma de excessos. Como a Igreja também impunha jejum à carne, a fase que antecedia a quaresma ganhou a alcunha de “adeus à carne” ou “carnevale” para os italianos, de acordo com a descrição do antropólogo e pesquisador carioca Felipe Ferreira em sua alentada publicação O livro de ouro do carnaval brasileiro. Foi assim que o Carnaval – ainda segundo o autor – se estabeleceu não como um tipo único de festejo, seja ele qual for, e sim como um período do ano. Ou seja, o marco histórico da existência do Carnaval, paradoxalmente, foi determinado pela Igreja.
Entrando na máquina do tempo, Ferreira ainda relata que as primeiras manifestações festivas revestidas de transbordamentos remontam às civilizações mesopotâmica e greco-romana. Há pesquisadores adeptos da idéia de que estes antigos festejos já eram uma espécie de Carnaval. Mas é na adolescência da era cristã, frisa Ferreira, que surgem as festas populares com espírito mais carnavalesco. E é somente com o correr dos séculos e o avanço cultural que se torna possível distinguir carnavalização (festa exagerada em qualquer época do ano) de Carnaval (grande concentração de brincadeiras num período específico).
Esplendor em Veneza
Passada a efervescência artística e de descobertas do Renascimento, grandes festas oficiais faziam a alegria das elites nos dias de Carnaval. Veneza, que sempre pareceu viver como se não houvesse amanhã, era um destes centros difusores da folia, principalmente a partir do século 17, quando um grande número de visitantes lotava a cidade para admirar as luxuosas fantasias usadas pela classe dominante. Até hoje seus habitantes preservam a tradição. Claro que sem o esplendor dos velhos tempos, mas com quase a mesma intensidade. Para um brasileiro acostumado às explosões de euforia da festa do verão, é no mínimo curioso constatar a determinação com que as pessoas assumem os personagens das fantasias e das máscaras, passando horas paradas na mesma posição, como se fossem estátuas vivas. Não dessas à espreita de alguma moedinha. Homens e mulheres fantasiados permanecem estáticos pelo simples barato de divertir se divertindo.
Nos tempos de Casanova, a diversão dos mais abastados não tinha tanta inocência. Era revestida de maldade estudada. Protegidos pela lei, os mascarados venezianos desfrutavam do anonimato fazendo fofocas e revelações íntimas de seus desafetos em plena Praça São Marcos, para onde todos eles iam antes de lotarem os históricos bailes realizados nos palácios. Longe do povão, escondidos pelas fantasias e incentivados pelos ambientes de libertinagem sem censura, a nobreza veneziana inaugurou um evento totalmente desvinculado da festança popular das ruas. Estes bailes suntuosos acabaram influenciando as principais cortes européias a organizarem algo semelhante. É bom frisar que, em muitas cidades, as classes de baixa renda eram apenas espectadoras dos principais festejos de Carnaval. Embora alguns elementos populares tenham sido assimilados pelas brincadeiras dos ricos. Basta lembrar do trio Pierrô, Arlequim e Colombina, migrado da Commedia Dell’Arte. Além de serem presença constante na folia italiana, as imagens dos três cruzaram o Atlântico e, por muito tempo, reinaram no carnaval carioca.
Felipe Ferreira lembra que o escritor alemão Goethe, quando esteve em Roma em 1790, registrou num diário todas as suas impressões do período carnavalesco. Dizia o alemão que na Cidade Eterna o Carnaval “não é uma festa que se dá ao povo, mas que o povo dá a si mesmo”. Em uma frase, o escritor resumiu o clima que rolava no milenar centro histórico. Segundo ele, a principal característica da festa romana eram as corridas de cavalo ao fim de cada dia de festejo. Antes do evento, o simples desfile dos garbosos animais cobertos por um pano branco, enfeitado de fitas coloridas, provocava grande aglomeração de pessoas que aproveitavam o burburinho para guerrear entre si lançando bolinhas de gesso ou confeitos de açúcar, os confetti. Daí a origem do que seria o confete, aqueles pequenos círculos de papel colorido. Um ano depois, em 1893, surgiria nas ruas de Paris a não menos famosa serpentina, seguida, no Brasil, pelo seu futuro rival em consumo, o lança-perfume, uma invenção dos cariocas.
Foi em Paris, aliás, cidade que no século 19 era tida como o principal centro de cultura do mundo, que o Carnaval iria tomar a forma da festa como hoje a conhecemos. Elegantes bailes à fantasia e de máscaras borbulhavam nos locais mais exclusivos em manifestações esplendorosas da burguesia composta de banqueiros, financistas e comerciantes. A ocasião era tão propícia para a ostentação, que o modelo foi imediatamente copiado pelos endinheirados de vários cantos, inclusive do Brasil. A intenção era que, cada vez mais, o Carnaval fosse uma festa das elites. Mas a divertida esculhambação, naturalmente proposta pelo povo, irá se manter. Mesmo com todas as tentativas dos mais ricos de querer abafar os folguedos por considerá-los bárbaros e inadequados. O resultado desta disputa, no entanto, levará Paris a perder o trono da folia mundial, cedido para a também francesa Nice. No Rio de Janeiro colonial, como a burguesia não guardava o mesmo poder de fogo – apesar de ter importado o modelo francês – a algazarra nascida nas ruas irá brotar com mais intensidade, como lembra o antropólogo Ferreira. Em ambos os casos, contudo, vale lembrar que a simbiose entre as diferentes maneiras de brincar o Carnaval produzirá novos formatos de festa.
Nasce a folia tropical
Divertido para quem praticava e brutal para suas vítimas, o entrudo se enraíza como a manifestação carnavalesca brasileira mais antiga e duradoura. De acordo com Leonardo Dantas Silva, em sua introdução à Antologia do Carnaval do Recife, já em 1553 um texto fazia referência ao entrudo em terras tupiniquins. Entrudo, que na língua dos patrícios significa sujeito ridículo ou muito gordo, foi trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses. Vem de uma tradição local, que reunia em passeio pelas ruas de pequenas cidades dois enormes bonecos de palha, um nomeado João e outro Dona Quaresma. Dependendo da região, eles ganhavam novos apelidos. Mas geralmente eram chamados de entrudos. Por fim, o nome genérico dos bonecos acabou se mesclando ao da própria brincadeira, já que entrudos é como até hoje são denominadas as festas do Carnaval lusitano.
Pois bem, os desfiles daqueles bonecos gigantes eram acompanhados por uma pequena multidão que entoava versos obscenos como forma de desabafo político. Acontece que a brincadeira muitas vezes desandava para a agressividade, com xingamentos pesados e lançamento de objetos sobre os bonecos. Em Lisboa, a coisa era pior. Nos dias de entrudo, pobre de quem saísse às ruas, pois a diversão era mirar as pessoas e acertá-las com ovos, farinha e até sacos de areia e moringas. Não raro um infeliz também quebrava as costelas ao estatelar-se no chão depois de escorregar numa escada besuntada pelo sadismo de algum engraçadinho.
No entrudo do Rio de Janeiro e das principais cidades brasileiras, a intenção dos foliões era molhar o desavisado com os chamados limões-de-cheiro. Na verdade, bolas de cera esverdeadas, um pouco maiores do que as de tênis, cheias de água perfumada. Também se usavam seringas enormes, feitas de folhas-de-flandres para, não raro, lançarem água suja nas pessoas. Depois de molhada, a vítima ainda ganhava por cima da roupa uma densa camada de pós variados que certamente a obrigariam a passar mais horas dentro de uma tina d’água do que todo o tempo normalmente dedicado aos banhos eventuais.
Em terras tropicais, havia dois tipos de entrudo, o familiar e o das ruas. Se comparado ao das ruas, o familiar era uma reunião no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Tanto que quase ninguém das classes mais altas ousava sair nestes dias. Gente do povo e escravos eram os principais protagonistas desta guerra que permitia qualquer tipo de munição: águas fétidas, restos de comida, estuque e tudo o que pudesse humilhar ou machucar. Como tinha certa hierarquia entre o populacho, alguns escravos valiam-se das funções mais importantes para exigir o respeito de outros menos favorecidos, como os temidos “tigres”. Estes eram encarregados de executar os serviços, digamos, mais íntimos dos seus senhores. Dá até para imaginar a cena se alguém esbarrasse nestes homens que transportavam as fezes e urinas dos sinhozinhos para serem lançadas ao mar.
O entrudo sofreu inúmeras restrições por parte do governo, mas mesmo assim a brincadeira reinou por quase 300 anos até a chegada da Família Real que ancorou no Rio de Janeiro trazendo hábitos mais refinados, como a organização de bailes à fantasia à maneira francesa. Também vieram os passeios de máscaras, e, claro, manifestações indiscutivelmente populares como os blocos, os cordões e os ranchos. Naturalmente, aos poucos algumas brincadeiras foram se destacando das outras. Uma delas é o histórico Zé Pereira. Há controvérsias sobre o seu surgimento. Cada pesquisador defende seu quinhão. Hiram Araújo, por exemplo, escreve em seu livro Carnaval: seis milênios de história que tudo começou quando um tal de José Nogueira saiu pelas ruas cariocas tocando um bumbo nos dias de Carnaval. Outros afirmam que o hábito teria sido importado de Portugal, onde grupos de rapazes das aldeias desfilavam tocando bumbos nos dias de folia. Segundo Felipe Ferreira, nenhuma das versões foi comprovada. O certo é que a brincadeira ganhou fôlego e Zé Pereira tornou-se a definição dos bandos de homens com roupas maltrapilhas, que passavam pelas ruas tocando tambores e instrumentos de sopro em altos decibéis, sempre arrastando uma multidão de foliões
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