quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

uma entrevista com Dermeval Saviani

DS: O PDE pode ser visto como uma tentativa do governo de responder aos clamores da sociedade no que se refere aos graves problemas de qualidade da escola básica pública. Iniciativa válida, já que procura centrar o foco na qualidade construindo instrumentos de aferição do nível de eficácia do ensino ministrado (caso do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica-IDEB) e se voltar, precipuamente, para as administrações municipais em que se detecta ponto de estrangulamento do ensino fundamental. Mas o Plano apresenta deficiências graves nas questões centrais do financiamento e do magistério. A base de sustentação financeira do Plano é o FUNDEB, que, entretanto, não significou aumento dos recursos; ao contrário, se o número de estudantes atendidos pelo Fundo aumentou de 30 milhões para 47 milhões (56,6%), o seu montante passou de R$ 35,2 bilhões para R$ 48 bilhões, apenas 36,3%. A complementação da União também não implicou acréscimo. Antes, ela deveria entrar com pelo menos 30% de seu orçamento; ora, o orçamento do MEC para 2007, após o corte de R$ 610 milhões imposto pela Fazenda, é de R$ 9,130 bilhões, logo, 30% corresponderiam a R$ 2,739 bilhões. No entanto, a complementação prevista da União para 2007 se limita a 2 Bilhões. Quanto ao magistério, é consenso o reconhecimento de dois requisitos fundamentais: condições de trabalho e salário/formação. O PDE cuidou da questão salarial definindo um piso de R$ 850,00, valor corrigido pela inflação sobre um salário de R$ 300,00 proposto em 1994. Esse valor correspondia a 4,28 salários mínimos; em relação ao salário mínimo atual, representa 2,23 vezes. Além disso, prevê-se sua implantação gradativa, chegando apenas em 2010 aos R$ 850,00. Significa importante aumento para as regiões em que os salários se encontram muito depreciados, mas é preciso ter presente que tais salários se referem, em geral, a jornadas de 20 horas semanais, enquanto o projeto do novo piso supõe uma jornada de 40 horas. Com relação às condições de trabalho, a questão principal, não contemplada pelo PDE, diz respeito à carreira profissional dos professores. Dever-se-ia propor a jornada integral em um único estabelecimento de ensino, para fixar os professores nas escolas, com presença diária e identidade com elas. E ainda destinar 50% da jornada para as aulas e o restante para permitir a participação do professor na gestão da escola, na elaboração do projeto pedagógico, nas reuniões de colegiado, no atendimento à comunidade e, principalmente, na orientação dos estudos do alunado em atividades de reforço. Para a formação docente, o PDE recorre à Universidade Aberta do Brasil (UAB), oferecendo cursos a distância de formação inicial e continuada dos professores. Não nego que o EAD possa ser utilizado com proveito no enriquecimento dos cursos de formação de professores. Tomá-lo, entretanto, como a base desses cursos não deixa de ser problemático, pois arrisca converter-se num mecanismo de certificação antes que de qualificação efetiva. Esta exige cursos regulares, de longa duração, ministrados em instituições sólidas e organizados preferencialmente na forma de universidades.
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o Senhor ressalta que o PDE está embasado numa lógica de mercado contemplada, por exemplo, na “pedagogia das competências”. Os PCNs já não acenavam nessa direção?

DS: Sim. Embora na gestão atual o MEC esteja procurando atacar questões básicas relativas à qualidade do ensino que foram transcursadas pela administração anterior, a lógica de base não foi alterada, mesmo porque ela decorre de uma política econômica que o governo Lula continuou. Tanto assim que o PDE foi proposto em sintonia com o grupo de empresários que lançou, em setembro de 2006, o Compromisso Todos pela Educação. Portanto, ainda que os PCNs não integrem o arsenal dos recursos de política educativa do atual ministro, a lógica subjacente a eles é a mesma que sustenta o PDE.

Pesquisa coordenada pelo Sr. no início da década de 80 identificou quatro concepções filosóficas orientadoras das práticas educacionais no Brasil: a) humanista tradicional; b)humanista moderna; c) analítica e d) dialética. Como vê, hoje, a presença e o embate entre essas concepções no planejamento educacional e na prática escolar?

DS: Abordo essa questão em meu novo livro História das idéias pedagógicas no Brasil, que será lançado em setembro. Na Conclusão, retomo, em três atos, o drama do professor descrito no livro. Primeiro ato: o professor tinha a cabeça escolanovista, mas era obrigado a atuar nas condições tradicionais; segundo ato: nessas condições sobrevém a ele a tendência tecnicista, instando-o a ser eficiente e produtivo; terceiro ato: ao mesmo tempo, a visão crítico-reprodutivista veio mostrar que, na crença de estar formando indivíduos autônomos, o professor estava reproduzindo a ordem vigente e, assim, contribuindo para reforçar os mecanismos de exploração. Como as pedagogias contra-hegemônicas formuladas nos anos 80 não tiveram força para reverter esse quadro, nos 90 o professor entra no quarto e atual ato de seu drama: ainda se pede a ele eficiência e produtividade, mas agora sem seguir um planejamento rígido; não é preciso pautar sua ação por objetivos pre-definidos e regras preestabelecidas. Como ocorre com os trabalhadores de modo geral, também os professores são instados a se aperfeiçoarem continuamente, num eterno processo de aprender a aprender. Acena-se, então, com cursos de atualização ou reciclagem referidos a aspectos fragmentários da atividade docente, todos eles aludindo a questões práticas do cotidiano. O mercado e seus porta-vozes governamentais parecem querer um professor ágil e flexível que, a partir de uma formação inicial ligeira, de curta duração e a baixo custo, prosseguiria sua qualificação no exercício da docência, lançando mão da reflexão sobre a própria prática, eventualmente apoiada em cursos rápidos, ditos também “oficinas”. Estas, recorrendo aos meios informáticos, transmitiriam em doses homeopáticas as habilidades que o tornariam competente nas pedagogias da “inclusão excludente”, do “aprender a aprender” e da “qualidade total”. É a concepção produtivista que, hegemônica desde a década de 70, é agora refuncionalizada numa espécie de neoprodutivismo.

Há pelo menos três décadas, a oferta de educação superior tem sido coberta, majoritariamente, pelas instituições privadas, tornando-as as maiores contratantes de professores. De que forma essa situação reflete a queda na qualidade do ensino/da formação, a ampliação de vínculos acríticos com os mercados, a destituição do lugar acadêmico da extensão e da pesquisa e a precarização do trabalho docente?

DS: De fato, esses aspectos estão interligados. Como a maioria das instituições privadas de ensino superior se guia pelos mecanismos de mercado, não contemplando institucionalmente a pesquisa, o ensino ministrado resulta numa formação precária. E como a maioria dos professores que lecionam na educação básica pública é formada nessas instituições, isso se reflete na baixa qualidade desse nível de ensino, dando origem a um círculo vicioso que não poderá ser revertido pelas políticas paliativas até agora postas em prática.

O ensino técnico e tecnológico vem sendo considerado um tipo de formação, respectivamente, média e superior mais adequado às expectativas dos jovens de ingresso no mercado de trabalho. Tais opções representariam a perda de prestígio do ensino de natureza propedêutica, teórica e humanista, em favor do ensino instrumental e prático?

DS: Num contexto como o atual, no qual o indivíduo não pode esperar, das oportunidades escolares, acesso ao emprego, mas apenas a conquista do status de empregabilidade, a educação passa a ser entendida como um investimento em capital humano individual que habilita as pessoas para a competição pelos empregos disponíveis. O acesso a diferentes graus de escolaridade amplia as condições de empregabilidade do indivíduo, mas não lhe garante emprego, pelo simples fato de que, na forma atual do desenvolvimento capitalista, não há emprego para todos: a economia pode crescer convivendo com altas taxas de desemprego e com grandes contingentes populacionais excluídos do processo. É o crescimento excludente, em lugar do desenvolvimento inclusivo que se buscava atingir no período keynesiano. A teoria do capital humano foi refuncionalizada, com isso alimentando a busca de produtividade na educação. Nessa situação, acaba por prevalecer um clima pragmático, individualista e imediatista, sendo compreensível a expectativa favorável a um ensino que estabeleça uma ponte direta e imediata com a ocupação de determinados postos no mercado de trabalho. Mas, assim procedendo, não será possível formar indivíduos autônomos e cidadãos conscientes e, portanto, profissionais socialmente competentes como se apregoa tanto nos discursos políticos quanto nas justificativas das medidas de política educacional e nos documentos legais. Contra essa tendência, parece-me necessário insistir na idéia gramsciana de uma escola unitária que promova, até o fim do ensino médio, uma formação geral de tipo “desinteressado” que culminaria na escola criativa, entendida como o momento em que o educando atinge a autonomia.

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